Friday, May 21, 2010

Neige Rouge

É no promontório da dúvida que já se encontrava sentado
vendo panfletos de outras histórias a esvoaçar
desde o início do tempo das palavras seladas

É sob as ondas que se vai flutuando em afaste
...vendo a multidão de um só eu, só agora chegando ao velho rochedo
e estendendo a mão, esbracejando adeus

embalando o fantasma anunciado de uma despedida


Friday, April 23, 2010

Coisa

Havia um pequeno pedaço talhado de mim que ficou naquela rocha
Será que as coisas também se sentam?
Eu estava sim pousado
Todas as ruelas ali contavam um conto
mas eu ficara pela beira mar
onde até as palavras doces são penedos em escarpa
cortando os braços de quem tenta sair do sítio
afogando histórias, mudando os dias e os nomes

O verde musgo contrastava com o breu calhau
apenas a dezenas de metros de uma encosta habitada
janelinha atrás de janela,
como se da nossa vida para fora
apenas tivéssemos um pequeno feixe de luz
vendo para além, ninguém olhando para dentro

Rodeando as rochas, pequenos barcos brancos de sonhos
desejos flutuantes cuja distância varia consoante o vento
que cantam, chamam, num exercício de tortura
Há festas nesses barcos que não se sabe o que têm
onde sombras festejam a noite, escondidas
Há copos espalhados pelo chão,
beatas que se vão apagando, que assim o estão há anos

No topo da vila estende-se o castelo
nele vivem aqueles que há anos temeram o mar
esculpindo uma vida longe das ondas de inverno
onde o azul brilhante também não chega,
aí cultivam as pautas rasteiras que fazem da vida
seguros a atrasar o aniversário de um fim qualquer

Cá de baixo tudo parece pior do que o que fica no topo,
sem saber que o não saber ser melhor é a coisa mais característica em ser coisa


Tuesday, March 9, 2010

Alfama

Não sei se te morda ou se te beije,
numa sequência contínua e ininterrupta


O reflexo de Penélope


























Naqueles momentos de pulmão cheio
as palavras dançam em rasgados sorrisos
enquanto pego nelas confiante
como se só lá estivessem para o meu uso

Nesse dia tudo é meu
todo o teu afecto e atenção
o mundo marioneta sob os olhos
um centro eu que o liga e desliga

Um dia em que não vivo sozinho
em que modelo as emoções dos outros
onde as falhas, pintadas de fresco,
vivem sob um sol ameno

Não há síncopes de dúvida
de quem se perde de mãos vazias
onde muito de ontem é vivido,
saboreado no nosso próprio engano

Quando olho a mesa vazia onde como,
para a companhia de um jornal relido,
o silêncio conta-me novamente a fábula
de como até eu sou transitório

Como se tivesse a felicidade estampada nas costas
sem nunca a conseguir ver sem ser ao espelho.

Friday, February 12, 2010

Viver no terceiro andar de outro eu

Há dias em que acordo calado
sem palavras para quem me ouve
fechado sem chave num quarto feito de portas

Dias em que me vejo
em que os outros só encontro com a palma da mão
quando só me resta os descobrir no escuro

Há tardes em que me esqueço como andar
em que arrasto o peito magoado através das palavras
até uma sombra onde esperar amanhã

Tardes em que não tenho lembranças
em que o primeiro dia se torna mesmo o primeiro
em que descobrir o nome das coisas basta para ser feliz

Há noites em que não sei dormir
feitas deste tudo que nada trás
deixando no colo sonhos que nem sequer irei reconhecer

Há manhãs em que não sei onde estou
em que o virado do avesso pode ser do avesso virado
e o mundo me diz não, quando eu tenho o mundo para lhe dar

Manhãs em que não sei que eu querem
em que não consigo escrever um novo
em que o tempo pára em redor de faces

Há dias que não existem em que eu falo
em que canto a história dos meus olhos
e passo a viver no terceiro andar de ti.

Friday, January 29, 2010

O caminho `a frente dos pés

O longo pontão dos contos de infância,
lá estava ele,
no mesmo sítio onde nascera.
Os velhos diziam que,
se nos sentássemos no seu único banco
tempo suficiente,
podíamos ver o mar a piscar-nos os olhos.
Levaste-me lá naquele dia sem saberes o que significava
para mim.
Senti que não precisava mais do olhar do mar porque
estavas lá.
Não encontrei o pontão no último sábado,
sozinho.
Aquele nevoeiro que tudo escondia...
Amanhã gostava de lá ir.
Sei que se nos perdermos juntos,
encontramo-lo.


Thursday, January 7, 2010

No andar

No número 25 há um gato, bigodes preso no seu espaço,
sem chave para a sóbria porta, porta velha de castanho,
cor dos dias do mês que corre.

Na rua esguia há um banco, banco de todo o tamanho vazio,
virado para dentro da loja antiga, contando os anos para trás,
fazendo dos olhos seu único fazer.

Atrás do jardim desenha-se uma janela, de quatro em quatro rectângulos espelhados,
de traço claro mas escondido traçado, onde há conversas que não existem,
onde peixes voam em direcção cega.

No antigo átrio deslizam murmúrios, veste-se a pele da tranquilidade educada,
dá-se passos num diálogo fantasma, esgueira-se por entre a imagem d'Ele,
à volta da fonte de esquecimento envenenado.

No fundo do copo sentado ao dia, enrolam-se palavras que saem repetidas,
de sim-sim e não-não casual, minutos que chamam nomes que se apagam,
de memórias tão memórias que se questiona o seu ser,
em cíclica novidade daquilo que não sai dali.

No ponteiro do relógio vejo que é tarde,
mas a ampulheta que comprei, diz que o hoje
ainda se poderá deitar com amanhã.
Enquanto se observam grãos a subir as escadas.